Volta e meia me pego pensando em práticas que hoje parecem normais, mas que, no futuro, vão parecer absurdas. Coisas que estão tão naturalizadas na rotina dos fóruns que já nem geram incômodo, mas que, quando olhadas com um mínimo de distanciamento, revelam falhas estruturais.

Um exemplo evidente disso é o modelo atual de nomeação e atuação dos peritos na Justiça do Trabalho.

Não se trata de uma crítica aos profissionais da perícia. Muitos são altamente capacitados e atuam com responsabilidade. O problema — em regra — não está neles. Está no sistema e na forma como o Judiciário lida com a produção da prova técnica e com os critérios que orientam (ou melhor, que não orientam) sua nomeação, fiscalização e remuneração.

Hoje, peritos são escolhidos por livre nomeação do juiz da causa. É um modelo pessoal onde não deveria haver pessoalidade. E quando se questiona a qualidade de um laudo ou a imparcialidade do profissional, não é incomum ouvir algo como: “confio nesse perito”. Mas confiança pessoal não é critério processual. A decisão judicial precisa estar amparada em provas objetivas, não em vínculos subjetivos.

Confiança do juiz se naturalizou

A confiança cega no perito de estimação é parte desse ‘som do silêncio’: todos sabem que há algo errado, mas o sistema segue em silêncio, confortável na própria disfunção.

A confiança pessoal do juiz no perito nomeado é tratada como algo natural — e, pior, suficiente. Mas isso revela mais do que uma falha técnica. É um sintoma de um sistema que, há muito, parou de se incomodar com seus próprios vícios.

Juízes que nomeiam sempre os mesmos profissionais, advogados que não contestam para evitar retaliações implícitas, servidores que operam sob a lógica do “sempre foi assim”. E assim se perpetua uma engrenagem que gira não por estar certa, mas por estar intacta — ainda que desequilibrada.

Se a confiança individual do magistrado fosse suficiente, a perícia seria desnecessária — ele poderia julgar com base em suas próprias impressões. Isso não é justiça. É arbitrariedade institucionalizada.

Imagine tentar explicar a um estrangeiro como funciona a perícia na Justiça do Trabalho.

Como dizer, sem enrubescer, que o juiz escolhe o perito com base em confiança pessoal — e que isso é tratado como critério legítimo? Como explicar que o mesmo juiz que nomeia é quem avalia, que não há controle técnico externo, que o laudo pode ser tendencioso e, ainda assim, suficiente? Que a neutralidade da prova depende de quem pode pagar um assistente técnico — e quem não pode, simplesmente torce? Tente justificar por que um sistema que exige imparcialidade permite que se repitam sempre os mesmos nomes, premiando os que “agradaram” e afastando os que destoam. Tente convencer alguém de fora que isso não gera distorções. Que essa engrenagem não está viciada. E quando ele, incrédulo, perguntar por que ninguém faz nada, talvez reste apenas um constrangido “sempre foi assim”.

É preciso critério objetivo na escolha do perito

A pergunta que fica é: quantos absurdos mais teremos que explicar antes de admitir que esse sistema precisa mudar?

Já passou da hora de termos um sistema de nomeação por critérios objetivos. Peritos deveriam ingressar por seleção pública e ser alocados conforme a necessidade das Varas. A distribuição deveria ser equitativa, controlada, transparente. Hoje, cada Vara faz como quer: algumas nomeiam por rodízio; outras mantêm uma lista informal e cativa. O resultado é a ausência completa de padronização. E onde não há critérios claros, sobra espaço para distorções.

Uma delas é o chamado clientelismo técnico: o perito, ao ser nomeado reiteradamente por um mesmo juiz, pode — ainda que inconscientemente — moldar seu comportamento às expectativas da Vara que o nomeia. Não porque seja desonesto, mas porque o sistema induz a isso. Quem agrada, volta. Quem diverge, é substituído. É um risco real à imparcialidade técnica do processo.

E há mais: a perícia, que deveria ser uma prova neutra, se tornou um fator de desigualdade. Quem pode pagar um assistente técnico qualificado, paga. Quem não pode, depende exclusivamente do laudo oficial. E isso desequilibra o jogo.

Falta de auditoria técnica em laudos

Outro problema silencioso: não há controle externo ou auditoria técnica sobre os laudos apresentados. Nenhuma instância revisa, tecnicamente, os pareceres. Nenhuma estrutura institucional verifica se aquele perito tem histórico de erros, laudos inconsistentes ou falhas reiteradas. Tudo depende da provocação das partes e da sensibilidade do juiz — o mesmo juiz que o nomeou. O laudo, portanto, pode ser ruim, tendencioso ou tecnicamente frágil — e, ainda assim, ser suficiente para formar o convencimento do juízo.

Some-se a isso o conflito de interesses mal resolvido: os peritos raramente declaram, de forma objetiva e verificável, vínculos com partes ou advogados. E o Judiciário não exige, na prática, esse tipo de filtro com o rigor que o tema merece. O processo não é blindado contra essas situações. E, quando algo vem à tona, a resposta institucional é fraca.

Remuneração depende do resultado da causa

No meio de tudo isso, existe mais uma distorção típica da Justiça do Trabalho: se o trabalhador perde a ação, o perito só recebe — eventualmente — do Estado, e por valores reduzidos. A remuneração do profissional passa a depender do resultado da causa. Isso, por si só, já compromete a neutralidade esperada. Perícia não pode ser aposta.

O pagamento deve ser digno e garantido, independentemente de quem venceu.

Alguém pode dizer: “mas a empresa pode adiantar o valor mesmo sem condenação”. Pode, claro. Mas isso resolve o problema ou apenas disfarça um vício sistêmico? A resposta é evidente.

Também é legítimo questionar os próprios valores arbitrados. Em perícias rápidas, padronizadas, com escassa complexidade, ainda se veem honorários elevados e sem correspondência com o serviço entregue. Faltam critérios de proporcionalidade. Faltam tabelas referenciais. Falta controle.

É curioso como boa parte do sistema jurídico parece confortável com esse modelo, como se fosse uma engrenagem que funciona mais ou menos, mas continua rodando porque ‘é o que tem pra hoje’. Mas isso não é estabilidade. É inércia. E não há justiça onde a inércia governa.

Objetividade por mais transparência

Um sistema mais objetivo e impessoal traria ganhos imediatos: mais confiabilidade, mais transparência, mais eficiência. Distribuiria melhor os profissionais, reduziria distorções e colocaria a perícia no lugar que ela realmente deve ocupar — o de prova técnica, e não de disputa subjetiva entre versões “confiáveis”.

Mas o problema vai além da ineficiência. Em sua forma mais extrema, esse sistema termina por mitigar desvios graves, como a compra de laudos ou a escolha estratégica de peritos “alinhados” ao entendimento do magistrado da causa.

Há situações em que a perícia deixa de ser um meio técnico de prova para se tornar uma peça de convencimento moldada sob encomenda. E não são raras as vezes em que a escolha recai sobre nomes que compartilham da mesma visão ativista do juiz — o que, na prática, esvazia o contraditório e contamina o resultado.

O que deveria ser imparcial e científico se torna instrumento de validação de uma decisão já tomada.

Nesse cenário, a confiança pessoal não é só um vício: é o álibi perfeito para justificar a adoção de pareceres convenientes, mesmo que tecnicamente discutíveis.

O tempo vai passar, e esse modelo — hoje tratado como natural — vai parecer absurdo. A pergunta é: vamos esperar o distanciamento histórico para reconhecer isso, ou vamos começar a corrigir agora?

 

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