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Ascensão da Mobilidade Elétrica e Dilema Tributário no Carregamento de Veículos: ICMS ou ISS?
18/08/2025



A transição para uma economia de baixo carbono e a busca por soluções de transporte mais sustentáveis impulsionaram, em escala global e nacional, a adoção de veículos elétricos (EVs). Este movimento, que representa uma profunda transformação na indústria automotiva e nos padrões de consumo, traz consigo não apenas inovações tecnológicas, mas também complexos desafios regulatórios e fiscais. No centro de uma crescente controvérsia no Brasil, encontra-se a definição da natureza jurídica da atividade de recarga de baterias de veículos elétricos, uma questão que opõe estados e municípios em uma disputa pela competência de tributar essa nova e promissora atividade econômica.
A incerteza fundamental reside em classificar o carregamento como uma operação de circulação de mercadoria (energia elétrica), sujeita ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência estadual, ou como uma prestação de serviço, fato gerador do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), de competência municipal.
Esta distinção está longe de ser um mero tecnicismo jurídico. Ela carrega implicações financeiras substanciais para toda a cadeia envolvida: desde os operadores de postos de recarga (eletropostos), que enfrentam uma severa insegurança jurídica sobre qual tributo recolher, até os consumidores finais, que podem arcar com o custo dessa indefinição. As alíquotas e os regimes de apuração dos dois tributos são drasticamente diferentes. Enquanto o ISS apresenta alíquotas que variam entre 2% e 5% e uma sistemática de apuração cumulativa, o ICMS possui alíquotas consideravelmente mais elevadas, em média de 18% a 21%, e um complexo sistema não cumulativo de débitos e créditos.
A ausência de uma legislação clara e unificada cria um ambiente de risco que pode inibir os investimentos necessários para a expansão da infraestrutura de recarga, um elemento vital para a massificação dos veículos elétricos no País. É importante analisar profundamente os fundamentos das teses antagônicas sustentadas por estados e municípios, as bases legais e regulatórias que cada ente federativo invoca, e as graves consequências dessa disputa para o desenvolvimento de um mercado em plena ascensão.
A fundamentação dos estados para reivindicar a incidência do ICMS sobre a recarga de veículos elétricos ancora-se em uma interpretação consolidada e histórica do direito tributário brasileiro, que classifica a energia elétrica como mercadoria. O pilar central deste argumento é o artigo 155, inciso II, da Constituição, que outorga aos estados e ao Distrito Federal a competência para instituir impostos sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”.
Complementarmente, os estados invocam o parágrafo 3º do mesmo artigo, que estabelece que, com exceção do ICMS e dos impostos de importação e exportação, nenhum outro tributo poderá incidir sobre operações relativas à energia elétrica. Para as Fazendas estaduais, essa disposição constitucional confere ao ICMS um caráter de exclusividade sobre qualquer operação que envolva o fornecimento de energia elétrica.
Este entendimento é reforçado por uma jurisprudência de longa data do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em julgamentos históricos como o do Recurso Especial nº 38.344, pacificou a natureza da energia elétrica como um bem móvel, uma mercadoria passível de comercialização e, consequentemente, de tributação pelo ICMS. Sob essa ótica, a atividade desenvolvida nos eletropostos não seria uma prestação de serviço, mas sim uma venda de energia elétrica a varejo, uma operação de mercancia que se encaixa perfeitamente no fato gerador do imposto estadual.
Seguindo essa linha de raciocínio, diversos estados têm se posicionado formalmente sobre o tema. A Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz-SP), por exemplo, emitiu duas soluções de consulta respondendo a postos de gasolina que indagavam sobre a tributação da atividade. Nestes documentos, a Sefaz-SP foi categórica ao afirmar que “somente o ICMS pode incidir sobre as operações relativas à circulação da energia elétrica, assim caracterizada como mercadoria” (RC 31007/2024 e RC 30579/2024), orientando os contribuintes a emitirem o documento fiscal pertinente ao ICMS antes da saída da mercadoria, ou seja, da venda da energia.
De maneira análoga, os governos de Minas Gerais, por meio da Solução de Consulta nº 35/2025, e de Santa Catarina, na Consulta à Comissão Permanente de Assuntos Tributários (Copat) nº 76/2024, manifestaram o mesmo entendimento, defendendo a cobrança do imposto estadual sobre a operação. Para os Estados, o fato de a energia ser entregue na bateria de um veículo não descaracteriza sua natureza de mercadoria, tornando a operação uma clara hipótese de incidência do ICMS.
Em contraposição direta à tese estadual, os municípios defendem que a recarga de veículos elétricos constitui uma prestação de serviço, sujeita, portanto, à incidência do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). O principal alicerce jurídico para essa interpretação é a Lei Complementar nº 116/2003, que rege o tributo municipal em âmbito nacional. Especificamente, os entes municipais apontam para o subitem 14.01 da lista de serviços anexa à lei, que prevê a tributação pelo ISS de serviços de “lubrificação, limpeza, lustração, revisão, carga e recarga, conserto, restauração, blindagem, manutenção e conservação de máquinas, veículos, aparelhos, equipamentos, motores, elevadores ou de qualquer objeto”.
A Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo, em nota oficial, afirmou categoricamente que “a operação de carga e recarga de veículos elétricos configura prestação de serviço”, enquadrando-a no referido subitem da lei. Para os municípios, a energia elétrica, embora seja um insumo essencial para a atividade, não representa o objeto central do contrato estabelecido com o consumidor. O que se contrata, na visão municipalista, é a disponibilidade de uma infraestrutura complexa, que inclui o acesso ao equipamento de recarga, a manutenção deste, a gestão de softwares para controle e pagamento e a conveniência de um espaço físico para a realização do procedimento.
Este argumento ganha um reforço significativo a partir da regulamentação setorial da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Através de resoluções como a Resolução Normativa nº 819/2018 e a mais recente Resolução Normativa nº 1.000/2021, a agência reguladora classificou expressamente a atividade de recarga de veículos elétricos como um serviço, distinguindo-a da comercialização de energia elétrica, que é uma atividade regulada e restrita a concessionárias.
A Aneel permite que qualquer interessado, como postos de combustíveis, shoppings e outros empreendedores, possa oferecer o serviço de recarga comercialmente, com preços livremente negociados. Embora uma norma regulatória não possua, por si só, o poder de definir a competência tributária, ela oferece um poderoso subsídio interpretativo sobre a natureza da atividade. Ao caracterizar a recarga como um serviço e não como venda de energia, a Aneel corrobora a tese municipal. Consequentemente, a maioria das empresas que operam eletropostos tem optado por recolher o ISS, emitindo a Nota Fiscal de Serviços Eletrônica (NFS-e), não apenas pela carga tributária ser menor, mas também por encontrarem no arcabouço regulatório e na Lei Complementar nº 116/2003 um respaldo consistente para tratar a operação como uma obrigação de fazer (serviço) e não uma obrigação de dar (venda de mercadoria).
A colisão entre as pretensões arrecadatórias de estados e municípios lança o crescente setor de mobilidade elétrica em um perigoso limbo jurídico. Esta “guerra fiscal” gera a pior situação tributária possível para o contribuinte: a dúvida. Para os empreendedores e investidores do setor de infraestrutura de recarga, a incerteza é um obstáculo formidável. A escolha por recolher o ISS, embora aparentemente mais vantajosa e alinhada com a regulamentação da Aneel, embute o risco constante de uma autuação fiscal por parte das secretarias estaduais de fazenda, que podem exigir o pagamento do ICMS dos últimos cinco anos, acrescido de multas e juros.
Por outro lado, optar pelo ICMS significa arcar com uma carga tributária significativamente maior, o que pode inviabilizar a operação comercial, além do risco de questionamentos por parte das administrações municipais. Esta insegurança jurídica funciona como um forte desincentivo ao investimento, retardando a expansão de uma rede de recarga pública robusta e confiável, que é condição essencial para a massificação da frota de veículos elétricos no Brasil.
Adicionalmente, a tese dos estados enfrenta um forte argumento contrário baseado na lógica da cadeia de consumo de energia elétrica. O operador de um eletroposto é, em sua essência, um consumidor de energia, que adquire o insumo de uma distribuidora e, nesta operação, já é onerado pelo ICMS. Exigir novamente o pagamento de ICMS na “revenda” dessa mesma energia ao proprietário do veículo elétrico configuraria uma forma de dupla tributação econômica sobre o mesmo bem dentro de uma mesma cadeia, o que é contestado por diversos tributaristas.
Este cenário de conflito tende a ser resolvido, como em casos análogos de disputas federativas sobre tributação, no âmbito do Poder Judiciário. Até que haja uma definição dos tribunais superiores, os contribuintes permanecerão em uma posição de extrema vulnerabilidade, e os custos associados a essa incerteza — seja pelo provisionamento para contingências fiscais ou pela maior carga tributária — serão, inevitavelmente, repassados aos preços finais, onerando o consumidor e dificultando a transição para uma mobilidade mais sustentável.
Uma solução definitiva para este conflito de competência está no horizonte, trazida pela promulgação da Lei Complementar nº 214/2025, que instituiu a reforma tributária sobre o consumo. A reforma prevê a extinção gradual de uma série de tributos, incluindo, notavelmente, o ICMS e o ISS. Em seu lugar, será criado um sistema de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual, composto pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência compartilhada entre estados e municípios.
Com a unificação dos dois impostos em um único tributo sobre uma base ampla de bens e serviços, a distinção entre “mercadoria” e “serviço” que hoje alimenta a disputa deixará de ter relevância para fins de tributação. A previsão é que a substituição completa dos impostos atuais e a vigência plena do novo sistema ocorram a partir de 2033.
Contudo, a longa transição para o novo modelo representa um desafio significativo. O período entre 2026 e 2032 será marcado pela convivência dos sistemas antigo e novo, com a redução progressiva das alíquotas do ICMS e do ISS e o aumento gradual das do IBS. Durante quase uma década, portanto, a insegurança jurídica para o setor de recarga de veículos elétricos persistirá. A ausência de uma solução de curto ou médio prazo significa que os investimentos no setor continuarão a ser feitos sob um manto de incerteza fiscal.
Enquanto a reforma não se consolida plenamente, a pacificação do tema dependeria de uma ação coordenada, seja por meio de uma nova lei complementar federal que trate especificamente da matéria, seja por uma decisão definitiva do Poder Judiciário, que estabeleça um precedente vinculante para todas as esferas de governo. Sem uma dessas intervenções, o avanço da infraestrutura necessária para suportar a frota de veículos elétricos do país continuará a ser freado por uma disputa tributária que ilustra as complexidades do federalismo fiscal brasileiro.
A controvérsia sobre a tributação da recarga de veículos elétricos no Brasil, opondo o ICMS estadual ao ISS municipal, é um exemplo clássico de como a ausência de um marco legal claro para novas atividades econômicas pode gerar insegurança jurídica e frear o desenvolvimento de setores estratégicos. De um lado, os estados se apegam à tradicional e consolidada natureza de mercadoria da energia elétrica para reivindicar a incidência do ICMS. De outro, os municípios, amparados pela legislação de serviços e pela regulamentação setorial da Aneel, defendem que a operação é, em sua essência, uma prestação de serviço complexa, sujeita ao ISS.
Enquanto a disputa perdura, o maior prejuízo recai sobre o mercado e a sociedade. A incerteza tributária desestimula os vultosos investimentos necessários para a criação de uma infraestrutura de recarga capilar e eficiente, condição indispensável para a viabilização da mobilidade elétrica em larga escala. Embora a reforma tributária prometa eliminar a raiz do problema com a unificação do ICMS e do ISS no futuro IBS a partir de 2033, o longo período de transição exige uma solução mais imediata.
A definição clara da tributação aplicável à recarga de veículos elétricos não é apenas uma questão de justiça fiscal, mas um passo fundamental para destravar o potencial de um mercado inovador, alinhado com as metas de sustentabilidade e com o futuro da mobilidade no país. Sem essa definição, o Brasil corre o risco de ver uma tecnologia promissora ser ofuscada por uma disputa arrecadatória anacrônica.
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