Publicações
A tecnologia e o risco do monitoramento excessivo
07/02/2024

A rápida inovação e evolução tecnológica têm impactado diretamente diversos ramos do conhecimento e atividades exercidas diariamente em empresas, incluindo as atividades conduzidas pelos profissionais do direito, além dos impactos na vida privada das pessoas.
É claro que as inovações tecnológicas trazem inúmeros benefícios para a sociedade em geral, mas, é inegável que trazem, também, diversos riscos que devem ser considerados e avaliados com cautela.
É o caso do monitoramento excessivo e/ou velado.
O uso do monitoramento é razoável e esperado em diversas circunstâncias, especialmente a fim de garantir a segurança pública ou privada. Contudo, o que vemos é um aumento no monitoramento, que pode ser categorizado como excessivo e/ou velado, não sendo sempre facilmente perceptível para as pessoas que estão sendo monitoradas.
Muitas vezes, o monitoramento não é considerado proibido, mas deve ser feito da maneira razoável e dentro dos limites legais, visando principalmente a proteção da privacidade dos indivíduos envolvidos, além dos demais direitos de liberdade e desenvolvimento livre da pessoa.
Portanto, trata-se de um assunto de extrema relevância, afinal, como lidar com essa situação no cotidiano? Como garantir a privacidade e proteção das pessoas? Como utilizar estas tecnologias a favor da minha empresa? O que os aplicadores do direito têm a dizer sobre isso?
Não é segredo que diversas empresas, legalmente, monitoram seus funcionários por meio de câmeras, softwares, gps, telefones, e-mails corporativos etc. Essas práticas não são proibidas, mas devem sempre seguir alguns preceitos e requisitos legais, sem os quais podem tornar-se excessivas!
Há alguns dias a Amazon, na França, foi multada em 32 milhões de euros por monitorar funcionários de maneira “excessivamente intrusiva”.
Segundo o órgão regulador responsável pela aplicação da multa (CNIL), a empresa estava vigiando os colaboradores através dos scanners usados para processar os pacotes. A empresa estaria coletando dados através do equipamento de scanner com o fim de medir a produtividade e o tempo ocioso dos funcionários.
O CNIL considerou o sistema de monitoramento excessivo, já que poderia ser utilizado para pressionar os funcionários a justificarem cada parada ou interrupção no trabalho e, ainda, apontou que a empresa também falhou ao não notificar o público interno e externo que o local é monitorado por câmeras.
A Amazon discorda veementemente do CNIL e irá recorrer, porém, temos um debate interessante em pauta, é possível monitorar o tempo trabalhado do funcionário (produtividade e tempo ocioso) através de um instrumento utilizado durante o desempenho das funções?
E o caminho para responder essa pergunta envolve, ao menos, duas áreas do direito: Trabalhista e Privacidade e Proteção de Dados.
Do ponto de vista do Direito do Trabalho brasileiro, não há nenhuma definição legal sobre o que seria o monitoramento excessivo, razão pela qual a Justiça do Trabalho utiliza conjuntamente com algumas disposições legais que orbitam o tema, o equilíbrio.
Em recentes decisões, a Justiça do Trabalho tem considerado que, apesar de ser possível ao empregador o monitoramento da prestação de serviços de seus empregados como manifestação de seu poder fiscalizatório, haverá abuso e excesso se for verificado algum desrespeito à honra, à imagem, à intimidade, à liberdade de ação, à autoestima, à sexualidade, à saúde, ao lazer e à integridade física deles, isto é, direitos abstratos dos empregados, protegidos pela CLT (art. 223-C).
Ou seja, independentemente de o método de monitoramento ser feito por meio de uma câmera ou por meio de um software de computador, se não houver um motivo legítimo para tanto ou se houver o desrespeito a alguns dos direitos abstratos dos empregados, se estará diante de um monitoramento excessivo.
Muito antes da inserção de tecnologias como os smartphones, o assunto já era motivo de discussão, como o caso da instalação de câmeras no local de trabalho, sobretudo em vestiários e banheiros.
Há décadas a Justiça do Trabalho entende que este tipo de monitoramento constrange o empregado e, portanto, enseja a condenação do empregador ao pagamento de indenização, posicionamento que muito provavelmente será adotado para os monitoramentos feitos por meio de softwares de computador e smartphones quando caracterizados como excessivos.
Por outro lado, e a partir disso, se houver um interesse legítimo no monitoramento e não for identificado um desrespeito frontal aos direitos abstratos dos empregados, isto é, havendo um equilíbrio de interesses, se estará diante de um monitoramento válido. Isto exige, por óbvio, uma análise jurídica do tipo de monitoramento a ser implementado pela empresa, de modo a identificar possíveis passivos.
Com relação à privacidade e proteção de dados pessoais, e levando em consideração o cenário legislativo e judiciário brasileiro, o uso de mecanismos de monitoramento de colaboradores, como o citado no exemplo, não é proibido, mas, precisa seguir uma série de requisitos para que seja feito legalmente.
Para começar, o monitoramento de colaboradores para verificação de produtividade e tempo ocioso é um tratamento de dados pessoais. No caso, os dados tratados seriam profissionais (tempo trabalhado e não trabalhado) e pessoais por serem potenciais identificadores de uma pessoa física.
A Lei Geral de Proteção de Dados (“LGPD”) não proíbe o tratamento de dados pessoais, mas traz uma série de preceitos e requisitos para que isso seja feito de maneira adequada.
Um desses requisitos trazidos pela LGPD é a observância da boa-fé e dos princípios do artigo 6º da LGPD em qualquer tratamento de dados pessoais que for realizado. No caso em tela, os principais que podem ser citados são:
Além disso, cada tratamento de dados pessoais deve estar enquadrado em uma das bases legais dos artigos 7º ou 11 da lei.
No caso do monitoramento de colaboradores, a primeira coisa que a empresa que pretende usar esses dados deve fazer é avaliar se o tratamento está de acordo com os princípios trazidos pela legislação respondendo a perguntas como:
• O tratamento desses dados é necessário? Qual finalidade pretendo atingir com o uso deles? Essa finalidade só pode ser atingida dessa forma?
• Quais dados realmente são necessários para atingir a finalidade que pretendo atingir?
• O equipamento que pretendo utilizar é seguro e preciso? Posso garantir a segurança e a segregação de acesso aos dados coletados?
• O tratamento em questão é transparente aos colaboradores?
Se a resposta para alguma dessas perguntas for NÃO ou não houver resposta, a empresa precisará reavaliar se realmente seguirá com o tratamento, já que pode não estar adequado à LGPD.
Caso a empresa consiga responder a todas as perguntas de modo a justificar o tratamento e enquadrá-lo nos princípios da Lei, para seguir com a análise e adequar o uso dos dados completamente à LGPD, deverá verificar se o tratamento se enquadra em uma das bases legais do artigo 7º ou 11º da Lei.
No caso, há possibilidade de enquadramento nas bases legais da execução de contrato (inciso V) e/ou do interesse legítimo (Inciso IX), mas, a definição da base legal de fato adequada para a situação dependerá do caso concreto.
Além disso, se a base legal mais adequada for interesse legítimo, cuidados extras são requeridos, como os requisitos do artigo 10 da LGPD, que envolvem, inclusive, a possibilidade de solicitação de Relatório de Impacto pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Inclusive, o ICO (Information Commissioner’s Office), autoridade de proteção de dados do Reino Unido, propõe um teste de três etapas para utilização da base legal do interesse legítimo, o que está bastante alinhado com nossa legislação:
Após, se o tratamento for possível de acordo com a legislação, será a hora de comunicar (dar transparência) os colaboradores de que o tratamento ocorrerá, como será feito e para qual finalidade. O que pode ser feito através de Políticas de Privacidade, Termos de Transparência, Cláusulas Contratuais, avisos/comunicados em murais, intranets etc.)
Do ponto de vista da LGPD, podemos dizer que o uso de mecanismos de monitoramento de colaboradores, como o citado no exemplo, não é expressamente proibido, mas, precisa seguir uma série de requisitos legais para que seja feito legalmente.
Voltando ao nosso exemplo, podemos afirmar que o monitoramento da Amazon francesa também não estaria adequado no Brasil, já que não cumpre a LGPD, pela falta de transparência e pelo uso da ferramenta com finalidade alterada, o que tem o potencial lesivo à privacidade do titular.
Autores:
Gustavo Vallesquino Fernandes
[email protected]
Giovanna Crotti
[email protected]
Luiz Paulo Salomão
[email protected]
Leonardo Bezerra Magalhães
[email protected]