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A limitação legal imposta pela Lei n. 14.879/2024 para a eleição de foro em contratos celebrados pelas partes
28/06/2024

A temática acerca da competência para julgar as ações é de suma relevância, a ponto de ser matéria apta a ser reconhecida de ofício pelo magistrado que apreciará a demanda e os autos serem remetidos a outro juízo.
Assim, para que as partes possam ter a previsibilidade necessária sobre o local em que a sua eventual demanda será julgada e para se evitar a extensão de discussão de temas iniciais ao processo, o Código de Processo Civil enumerou em seus artigos 42 a 66 as pertinentes regras de competência, as quais devem ser respeitadas, especialmente, se forem as consideradas as de caráter absoluto.
Dentro desta circunstância, cabe dizer que existem, fundamentalmente, dois tipos de competência, quais sejam a de caráter absoluto e a de caráter relativo.
A competência absoluta, prevista no artigo 62 do Código de Processo Civil, decorre em razão da matéria, da pessoa ou por questão funcional, e não pode ser modificada pelas partes em hipótese alguma, bem como pode ser reconhecida de ofício pelo Magistrado quando observar inconformidade neste contexto, especialmente, por ser considerada matéria de ordem pública.
Exemplo deste tipo de competência é a obrigatoriedade de questões criminais serão tratadas por juízes criminais, o foro privilegiado de ocupantes de cargos públicos para ações em que são réus e a competência originária de Tribunais para apreciarem determinadas demandas como a Ação Rescisória.
Já a competência relativa mostra-se como aquela que pode ser modificada por vontade das partes ou por prorrogação oriunda de conexão ou continência de causa. Neste aspecto, são consideradas como relativas as competências que decorrem em virtude do valor e do território, conforme a previsão do artigo 63 do Código de Processo Civil.
Ainda, vale dizer que existem exceções, tais como nos casos de ações que envolvam imóveis (artigo 47 do Código de Processo Civil), de falência (Lei n. 11101/05), dentre outras.
Mantendo-se olhar sobre a questão da competência relativa, é valioso destacar que o mencionado artigo 63 do Código de Processo Civil assevera que as partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações.
A parte final do aludido dispositivo é relevante, pois autoriza os contratantes a negociarem o local em que será dirimida eventual controvérsia sobre o contrato que estão celebrando, afastando qualquer outro por mais competente que seja. Assim, as partes podem estabelecer a cláusula de eleição de foro, que será o juízo competente para julgar as demandas relacionadas ao negócio jurídico, desde que a condição contratual não seja abusiva, podendo o juiz reconhecer de ofício tal cenário, reputando-a ineficaz imediatamente e/ou a parte requerida alegar em sede de contestação após a sua citação.
Cabe dizer, também, que a possibilidade de os contratantes eleger um foro competente já estava presente no antigo Código de Processo Civil, notadamente, em seu artigo 111, o que foi mantido no novo Código no citado artigo no parágrafo anterior.
Ademais, existe a mencionada autorização para que as partes pactuem este negócio jurídico processual, com o intuito de escolher o melhor juízo a analisar o objeto do instrumento que avençaram.
Para exemplificar, eventual controvérsia acerca de um contrato de franquia ou compra e venda de ações para fins de incorporação ou fusão de empresas seria mais bem discutida em juízo que possua vara especializada na área empresarial.
Portanto, se as empresas que celebrariam o contrato estivessem em locais nos quais inexistisse varas especializadas neste sentido, poderiam determinar que qualquer conflito sobre o instrumento seria levado a discussão em comarcas diversas daquelas de suas respectivas sedes, com o intuito de garantir a maior especialização no instante da análise da controvérsia. Dessa maneira, se as empresas estivessem em cidades e outros Estados que não possuíssem vara especializada na matéria empresarial, elas poderiam apontar as Comarcas de São Paulo e de Campinas para dirimir a questão, já que o Tribunal de Justiça local constituiu tal especialidade em suas Regiões Administrativas Judiciárias.
Vale ressaltar que, pela interpretação literal do parágrafo primeiro do artigo 63 do Código de Processo Civil, haveria certa liberdade para a escolha, uma vez que não era previsto qualquer tipo de limitação na escolha, a não ser que este se demonstrasse abusiva, conforme a previsão dos parágrafos terceiro e quarto do dispositivo. A única exigência que se observava era a de que deveria constar de instrumento escrito e aludir expressamente a determinado negócio jurídico.
Porém, o Projeto de Lei n. 1803/2023, convolado na Lei Ordinária n. 14879/2024, mudou parte do regramento do tema, incluindo limitações relevantes que afetam, frontalmente, a liberdade das partes pactuarem. Ora, com a publicação da alteração do Código de Processo Civil, houve mudança no parágrafo primeiro do artigo 63, bem como a inclusão do parágrafo quinto.
Com a modificação, o foro a ser eleito pelas partes deverá guardar alguma relação com elas, seja por questão de domicílio, residência ou local de sua sede, mantendo-se a obrigatoriedade de constar de instrumento escrito e de aludir expressamente a determinado negócio jurídico, ressalvados cenários que envolvam o consumidor, no qual se observará o contexto mais benéfico ao último.
Ato contínuo, houve a inserção de nova disposição, que prevê que o ajuizamento da ação em comarca que não tenha qualquer relação com as partes ou com o contrato será considerada prática abusiva e leva à possibilidade de o juiz definir pela sua impossibilidade de julgar a causa e enviar os autos ao local pertinente para tanto.
A justificativa trazida para alteração se deu pelo entendimento de que a escolha do foro não poderia ser aleatória, sob pena de violar a boa-fé, devendo, em verdade, a cláusula de eleição de foro ser usada com lealdade processual, como também para conter inúmeras ações em comarcas e tribunais que não guardem qualquer relação com as partes contratantes¹.
Embora o Código de Processo Civil autorize a eleição de foro, tal escolha não pode ser aleatória e abusiva, sob pena de violação da boa-fé objetiva, cláusula geral que orienta toda a sistemática jurídica (…).
Portanto, a cláusula de eleição de foro deve ser usada com lealdade processual. Ocorre, contudo, que essa não tem sido a realidade prática (…).
Ora, o foro de eleição não pode ser utilizado deliberadamente, ao bel-prazer das partes, sob pena de se transmutar em abusividade. Em que pese o Código Civil estabelecer, como regra, a autonomia privada e a liberdade de contratar, a escolha aleatória e injustificada de foro pode resultar em prejuízo à sociedade daquela área territorial, sobrecarregando tribunais que não guardam qualquer pertinência com o caso em deslinde.
(…)
Nesse contexto, exsurge o presente Projeto de Lei com o propósito de provocar este Poder Legislativo a acrescer ao Código de Processo Civil limites à cláusula de eleição de foro, com vistas a coibir a prática abusiva desse direito, buscando sempre resguardar a pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação, sob pena de se tornar um mero instrumento para escolha dos tribunais que apresentam melhor desempenho no País e, consequentemente, em detrimento da jurisdição em que atuam.
A partir desta mudança legislativa, algumas conclusões e problemas são perceptíveis.
A primeira conclusão que se pode tomar é a de que não houve proibição quanto à possibilidade para as partes elegerem o foro competente para discutir o objeto do contrato. De igual modo, observa-se a limitação imediata da liberdade das partes em pactuar, especialmente, em questões de direito processual e moldar o procedimento através de um negócio jurídico processual.
Ademais, pode-se concluir por uma regionalização das demandas, ficando restritas às áreas em que as partes estão localizadas, impedindo, assim, a escolha por varas especializadas, se o caso. Também, a alteração seria a confirmação da tendência da jurisprudência brasileira em abrandar a interpretação do artigo 63 do Código de Processo Civil e da Súmula n. 335 do Supremo Tribunal Federal e tratar, de maneira equânime, contextos de abusividade.
Porém, como elencado, existem problemáticas a serem consideradas. Primeiramente, é importante destacar que tal alteração fere o postulado fundamental da Lei de Liberdade Econômica (Lei n. 13874/2019), já que, em seu artigo 3º, VIII, há a defesa de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes.
Ato contínuo, a alteração poderá trazer empecilhos do acesso a justiça, nos termos do artigo 4º do Código de Processo Civil, de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa, com a limitação de acesso a jurisdições especializadas. E mais, poderá trazer empecilhos econômicos e comerciais, com a regionalização da demanda e impedimento no acesso a varas especializadas.
Por fim, há certa nebulosidade sobre a aplicação imediata da mudança, já que, se considerada norma de direito processual, a alteração não poderia atingir os contratos celebrados anteriormente a sua vigência, por força do artigo 14 do Código de Processo Civil, que preconiza que a norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.
Adiciona-se, ainda, a possível violação da liberdade contratual que seria atingida, bem como a necessidade de revisão contratual de inúmeros negócios para a aplicação da nova norma ou não ao caso, afetando, intrinsicamente, a celebração de negócios.
O tema é recente e demanda a análise pertinente do cotidiano judicial sobre a aplicação da alteração nos processos em vigência. Inclusive, a alteração já tem sido utilizada para o julgamento de ações em curso para certificação da (in)validade da cláusula de eleição de foro:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL. ELEIÇÃO DE FORO. Decisão que rejeitou a preliminar de incompetência territorial, com fundamento nas normas de proteção ao consumidor, afastando o foro de eleição. Pretensão de reforma. CABIMENTO: Inaplicabilidade das normas de proteção do consumidor. Operação que tem o objetivo de aumentar a atividade negocial da empresa, o que lhe retira a qualidade de destinatária final. Validade da cláusula de eleição de foro – Art. 63, caput e § 1º do CPC. Foro de eleição que coincide com o domicílio do agravante e com o local do cumprimento da obrigação, requisitos adicionados pela Lei 14.879/2024. Aplicação da Súmula 335 do STF. Incompetência territorial reconhecida. Decisão reformada. RECURSO PROVIDO. (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 20939101320248260000 Guarulhos, Relator: Israel Góes dos Anjos, Data de Julgamento: 21/06/2024, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/06/2024)
Sendo controversa a alteração, há que se destacar que a causalidade será de suma relevância para observar a extensão dos efeitos da limitação da liberdade das partes para a eleição do foro competente para julgar controvérsias do contrato que celebraram.
Diante da penumbra que ainda atinge o tema, a Equipe Cível está a postos para avaliação de seus contratos para mensurar os riscos oriundos da cláusula de eleição de foro.
Autores:
Matheus Lucio Pires Fernandes
[email protected]
Artur Feresin Perrotti
[email protected]
Mauricio Dellova de Campos
[email protected]
[1] Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2257620&filename=Tramitacao-PL%201803/2023. Acesso em 27 de junho de 2024, às 17h30min.